Ato reúne cerca de mil pessoas na Catedral da Sé
Em celebração realizada na segunda-feira, 12 de julho, na Catedral da Sé, em São Paulo, jornalistas, relações públicas e profissionais das agências de comunicação pediram paz e justiça. A celebração, em memória do jornalista Leonardo Blaz Cicoti, assassinado no dia 11 de julho em São Paulo, também foi um ato de ação de graças pelo empresário Ivandel Godinho, sócio da agência In Press Porter Novelli, seqüestrado desde o dia 22 de outubro de 2003.
Familiares de Leonardo, e também seus colegas de trabalho na agência Voice, além de familiares e amigos de Ivandel levaram à Catedral rosas brancas, ato simbólico de uma campanha que conclama à mobilização da sociedade para que haja mais segurança nas cidades brasileiras. A Abracom foi representada pelo diretor de assuntos Institucionais, Mauro Lopes e pelo secretário-executivo, Carlos Carvalho.
O escritor e jornalista Ignácio de Loyola Brandão, presente no ato, leu um emocionante texto que conclama a participação de todos no esforço para promover mudanças na sociedade brasileira. Veja a íntegra do texto, que pode, e deve ser reproduzido.
?Leonardo Blaz Cicoti está morto.
Tinha 26 anos e está morto.
Ivandel Godinho foi seqüestrado e está desaparecido desde outubro de 2003.
Leo está morto.
Não tinha doença nenhuma, não sofreu um acidente e está morto.
Leo não fará mais reportagens sobre música popular brasileira, uma de suas paixões.
Leo não vai criar a sua organização não governamental dedicada às crianças.
Leo não vai mais defender o SOS Mata Atlântica.
Leo não vai mais lutar contra o descaso com que se trata os professores brasileiros.
Professores que, segundo ele ? e todos nós ? poderiam fazer a diferença entre uma criança com oportunidade e uma criança sem futuro que não valoriza a própria vida e, portanto, não pode valorizar a dos outros.
Leo não vai mais se revoltar contra os atos brutais e sem punição.
Leo não vai mais lutar contra um sistema que segundo ele ? e todos nós ? é a causa da violência porque é um sistema sem justiça, sem segurança, sem moradia, sem trabalho, sem saúde, sem educação, sem emprego, sem dignidade.
Nesta casa de Deus, pergunto: Que sistema é esse, meu Deus, em que vivemos?
Leo não terá a resposta.
Leo está morto.
Leo, um permanente indignado num país de acomodados, não vai mais lutar.
Leo que buscava sempre novas experiências, novos conhecimentos, outras culturas, como ir a Nova Zelândia, partiu muito cedo em busca do último mistério de nossas vidas, o depois da morte.
Leo não escreverá mais reportagens, não amará, não terá filhos, continuidade, não fará entrevistas, não produzirá livros, não defenderá mais nada e ninguém.
Leo está morto.
Aos 26 anos, num ato corriqueiro, banal, cotidiano. Foi morto num assalto cotidiano, banal, rotineiro. Porque assaltos e mortes e corrupção e impunidade são atos corriqueiros, banais, cotidianos, normais.
Que vida estamos vivendo?
Que sistema é esse que alimenta esses aliens em seu estomago?
Mas estes aliens não seriam pessoas normais como nós se tivessem educação, trabalho, comida, saúde, moradia, possibilidade de futuro?
Ao excluir uma parte da sociedade de viver, o sistema está condenando a outra parte também ao não viver.
Se uns vivem sabendo que não tem futuro e que a vida é banal, corriqueira, se uns vivem capazes de todos os atos, porque não têm nada a perder, os outros sabem-se condenados.
Porque vivem ? vivemos ? com medo.
Medo de quem se aproxima.
Medo dos cruzamentos.
Medo de chegar em casa.
Medo de sermos seqüestrados, como foi Ivandel Godinho.
Porque o gesto pode ser fatal.
Medo de abrir a porta do carro, do portão da casa.
Medo do caixa eletrônico.
Medo de deixar o carro estacionado.
Medo de andar na rua.
Medo de nossos filhos irem para a escola, porque eles podem não voltar um dia.
Escolas? Que escolas? Escolas sem prédios, sem vagas, sem professores.
Não escolas.
Medo de precisarmos da saúde pública, porque ela vem sendo deteriorada , em favor do convênio privado, assim como a escola pública vai desaparecendo em favor da escola privada.
Medo de subir no ônibus ou no metrô.
Medo de ir ao estádio.
Não sabemos de onde ele, o assassino, o ladrão, o seqüestrador vai surgir.
Não sabemos de onde virá o tiro.
O telefone que toca à noite pode estar comunicando a morte de nossos filhos, nossos amigos, nossos pais, nossas mulheres, maridos, vizinhos.
Não sabemos onde o perigo se oculta.
Aliás, o perigo não se oculta mais.
Culpado é o sistema, sim.
Do presidente itinerante, a fazer propostas mirabolantes aos empresários do mundo, dançando em festinhas do arraial, mas indiferente ao seu arraial, ao congresso, ao judiciário, aos governadores e prefeitos, ao mais ínfimo vereador.
Não acreditamos na justiça,
Temos medo da policia.
Todo esse sistema tem um adversário a menos para incomodá-lo, para atazaná-lo, para exigir mudanças, para pedir que preste contas.
Um adversário a menos, porque Leo está morto.
E acaso não estamos mortos todos nós, nesta acomodação, nesta apatia, nesta não revolta? Neste conformismo?
Já saímos as ruas para pedir Diretas Já, para pedir impeachment.
Não está na hora do País inteiro ir para as ruas para exigir uma atitude desse governo que parecia a última esperança?
Não estamos no Iraque, mas nos assemelhamos.
Não estamos nos campos de concentração nazistas, mas temos grades a nos cercar, somos prisioneiros em nossas próprias casas. Não temos fornos crematórios a nos esperar, mas temos a bala perdida, o assassinato determinado, o seqüestro circunstancial.
Moramos em uma das mais perigosas áreas de risco do mundo.
Não há mais lugares seguros, acabaram os refúgios.
Leo está morto, mas que sua morte não seja em vão.
Ivandel Godinho sequestrado e desaparecido
Que este ato, esta missa, seja um ato pela vida.
Ele pode ter um significado.
Porque eu também estive nesta mesma catedral, 30 anos atrás, na tarde de outubro de 1975 para um ato de desagravo pelo assassinato de Wladmir Herzog nos porões do DOI-CODI. Milhares de pessoas aqui vieram, desafiando a policia normal, a secreta, os agentes infiltrados. A morte de Herzog, o Vlado, foi um passo no caminho da mudança para uma transição democrática. Foi um símbolo.
Que este encontro por Leo e Ivandel seja também um símbolo, um momento.
Ao mesmo tempo, eu me pergunto: quantos símbolos e quantas mortes ainda serão necessárias??