Liberdade e disciplina

Aquece a discussão sobre o projeto de lei instituidor do Conselho Federal de Jornalismo, recentemente enviado ao Congresso Nacional. Entendo que a existência de uma ordenação da profissão de jornalista por meio de um estatuto, com a criação do conselho federal e de conselhos regionais,

por si só, não afronta de forma nenhuma a liberdade de imprensa.



O Estatuto da OAB diz, em seu artigo 44, II, que a Ordem tem por finalidade a representação, a defesa, a seleção e a disciplina dos advogados. No parágrafo primeiro desse artigo, edita que a OAB

não mantém com os órgãos da administração pública nenhum vínculo funcional ou hierárquico.



Nós, advogados, muitas vezes litigamos com o Estado, enfrentamos diariamente as autoridades na defesa do direito dos cidadãos frente ao arbítrio estatal. Por pugnar pelo retorno do Estado democrático, pretendeu a ditadura submeter em 1.972 a Ordem ao Ministério do Trabalho. O então

presidente de nossa entidade, José Ribeiro de Castro, liderou um movimento de resistência e a pretensão autoritária não vingou, para o benefício do país.



A independência da Ordem dos Advogados é essencial por uma especial razão. Nós, advogados, que temos, por destino histórico e por determinação do estatuto, a missão de lutar pela preservação e aprimoramento da ordem democrática, podemos estar submetidos a uma ordem legal disciplinadora de

nossa profissão quanto à seleção e inscrição, bem como a um controle ético por via da previsão de infrações disciplinares com suas respectivas sanções, mas não devemos estar sujeitos a controle por parte de nenhum órgão da administração pública, razão pela qual a OAB não pode ser um órgão em linha do Ministério do Trabalho.



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A liberdade de informar e criticar exige que não se vá além de disciplinar, sem pretensões de orientar ou fiscalizar



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O mesmo deve ocorrer com o órgão de classe dos jornalistas. Tal se justifica dado que o jornalista deve, como o advogado, estar revestido de toda a liberdade, pois em sua missão de informar não apenas revela fatos, mas vai mais longe ao interpretá-los e criticá-los, buscando as razões

aparentes e as verdadeiras dos atos da administração pública. É função do jornalista denunciar os acontecimentos nocivos, ilícitos ou imorais, ou elogiá-los, se positivos no atendimento a necessidades políticas ou econômico-sociais da população. Não pode, portanto, haver submissão

hierárquica do conselho profissional dos jornalistas ao Ministério do Trabalho.



Por outro lado, a Ordem dos Advogados não se imiscui na fiscalização ou orientação do exercício profissional, limitando-se a atuar na repressão às infrações éticas constantes do próprio estatuto e do código de ética. Igualmente, não deve o jornalista estar sujeito à orientação e à fiscalização (fiscalizar, conforme o dicionário "Aurélio", é vigiar, sindicar, examinar) por parte do órgão de classe, no exercício de sua profissão. Disciplina, sim; orientação e fiscalização, não, como propõe

o projeto de lei.



Há um código de ética dos jornalistas ainda sem eficácia exatamente por falta de uma ordem legal da profissão. O código de ética deve integrar a lei, estatuindo-se claramente as sanções aplicáveis a cada infração. É importante haver uma disciplina da profissão em defesa do interesse público e da revelação correta dos fatos, punindo-se, por exemplo, as deturpações e manipulações dolosas da verdade, como preceitua o art. 7º do Código de Ética. Nada ofende a liberdade de imprensa um estatuto do jornalista que dê eficácia ao Código de Ética, do qual constem regras objetivas de comportamento, cujo desrespeito venha a ser objeto de apreciação por seus pares, legitimamente eleitos. Mas a liberdade de informar e criticar exige que não se vá além de disciplinar, sem

pretensões de orientar ou fiscalizar.



Outra falha do projeto está em não fixar as regras de composição e eleição dos membros do Conselho Federal e dos conselhos regionais. O projeto peca por ser largamente omisso, deixando para o Conselho Federal Provisório o preenchimento normativo nas hipóteses de lacuna, que são muitas.



Uma questão que causa estranheza está na referência, acrescentada, na Casa Civil, ao texto oriundo do Ministério do Trabalho, estabelecendo como objeto do conselho o controle da atividade de jornalismo ao lado da disciplina da profissão de jornalista. O que se pretende dizer com a atividade de jornalismo? Em passo nenhum do projeto se define o que seja. Se a pretensão é fiscalizar e controlar as empresas jornalísticas, por meio de um conselho de jornalistas, estão-se misturando alhos com bugalhos, pois uma atividade econômica regida por legislação própria, as leis de imprensa e de concessões de telecomunicações, não pode ser objeto de orientação, disciplina e fiscalização de órgão profissional que não a integra e não a representa.



E como a lei é omissa, caberá ao conselho suprir a lacuna, para dizer o que é atividade de jornalismo, bem como quais as regras que essa atividade deve seguir. Faz falta um Estatuto do Jornalista, mas a proposta ora em exame exige modificações importantes, que se espera venham a ser

produzidas pelo Congresso Nacional.



(*) Advogado, sócio da Reale Advogados Associados, é professor titular da Faculdade de Direito da USP. Foi secretário da Segurança Pública (governo Montoro) e da Administração (governo Covas) do Estado de São Paulo e ministro da Justiça (governo Fernando Henrique Cardoso)
FONTE: Folha de S. Paulo

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