A melhor cobertura de economia nem sempre é a dos grandes fatos, como a decisão do governo de não renovar o acordo com o FMI, a liquidação da Medida Provisória 232 e a nomeação do guerreiro Paul Wolfowitz para a presidência do Banco Mundial. Cada um desses temas vale por um banquete. Os jornais circulam com material suficiente para empanturrar o leitor. Alguém terá lido tudo que saiu a respeito de Brasil e FMI em qualquer dos principais diários?
Mas a vida é muito mais que uma coleção de fatos extraordinários ? e estes, afinal, nem sempre são os mais importantes. A longo prazo, a economia pode ser muito mais afetada pelo sucesso ou fracasso da política industrial ou por uma decisão judicial que poucos notaram. A propósito, como vai a política industrial lançada com fanfarra no ano passado?
Mal começou a execução dessa política, segundo o diário econômico Valor. Em 2004, a economia cresceu, o investimento aumentou e a indústria de máquinas teve um desempenho exuberante, mas tudo isso ocorreu apesar da lentidão e do atraso na ações prometidas pelo governo. A reportagem foi motivada pelo primeiro aniversário, em 31 de março, do lançamento oficial da política. Quem mais se lembrou dessa data ou teve a idéia de fazer um balanço?
Em quatro reportagens, publicadas entre 28 e 31 de março, Ricardo Balthazar mostrou a enorme distância entre o prometido e o realizado nos vários setores cobertos pelo programa. Não se limitou a apontar a diferença entre os financiamentos anunciados e os concedidos até agora. Foi mais fundo e revelou, por exemplo, que alguns instrumentos da política ainda não estão em condição de uso. É o caso da Lei de Inovação Tecnológica, aprovada no fim do ano mas ainda objeto de controvérsia entre setores do governo.
Trabalhos como esse têm o mérito especial de mostrar aspectos menos visíveis e imensamente importantes do dia-a-dia. Dão uma noção clara de onde estamos e de como andamos ou empacamos. São, por isso, muito diferentes do material predominante no jornalismo de Economia.
Dormindo no ponto
A maior parte da cobertura econômica é formada por quatro tipos de material. Um deles é o acompanhamento rotineiro de indicadores e de fatos da agenda. Dados financeiros, reuniões do Copom, estatísticas periódicas e eventos sazonais compõem essa parte. Outra categoria inclui o noticiário que todos acompanham e que se desdobra, por exemplo, no dia-a-dia dos projetos em tramitação no Congresso e nos debates e negociações internos ou externos de maior repercussão.
O terceiro tipo é o material produzido sobre os chamados grandes eventos, aqueles que se impõem como se já trouxessem, no seu bojo, manchete, lide e sublide. Não surpreende que os títulos principais sobre o caso Brasil-FMI e sobre o fim da MP 232 tenham sido, na maior parte dos jornais, muito parecidos. Completam a lista as matérias de negócios, quase sempre histórias fechadas nelas mesmas.
A maior parte dessa cobertura pode ser indispensável, mas não transmite a pulsação do mundo real. O mundo mostrado pela imprensa aparece pouco articulado na sucessão diária de informações.
Uma reportagem como a de Ricardo Balthazar ajuda a criar essa articulação. É tão eficiente nessa função quanto a matéria ? também do Valor ? sobre o avanço chinês no mercado mundial de têxteis e confecções. Todo mundo sabia, ou devia saber, que o fim do sistema de cotas abriria, nos principais mercados, enormes espaços à indústria chinesa. Isso afetaria também a indústria brasileira. A maior parte da imprensa nacional demorou a se ocupar do fato e só tocou no assunto quando estava expirando o regime de cotas. Mas só um jornal tratou de contar, há poucos dias, o que ocorreu nestes primeiros meses de mercados abertos.
Curiosidade e atenção
Esse tipo de material não cabe na pauta rotineira, que em grande parte consiste no mero desdobramento do que já foi publicado. A tendência à inércia, que não é nova, foi agravada com o ritual quase religioso da repercussão, uma das pragas que se espalharam pelo jornalismo brasileiro há alguns anos.
Matérias com a pulsação do mundo real só podem nascer de uma curiosidade permanente e de uma atenção constante ao que ocorre fora das bolsas de valores, consultorias e outros locais onde a imprensa busca as informações pasteurizadas do seu dia-a-dia. Sem essa curiosidade e sem essa atenção, as mudanças mais importantes ficam perdidas na paisagem cinzenta da rotina.
Como produzir uma cobertura econômica relevante, hoje, sem levar em conta as decisões produzidas pelos tribunais? O Judiciário tornou-se, desde o final dos anos 1980, um dos principais elementos balizadores da economia brasileira. Tanto suas forças quanto suas fraquezas têm tido enorme influência na ação do governo e na evolução dos negócios. No entanto, só dois jornais, a Gazeta Mercantil e o Valor, oferecem cobertura regular dos debates judiciais que afetam os negócios. Para os demais, o Judiciário só existe quando trata dos casos mais comentados e ruidosos, percebidos até pelos mais desatentos.
Curiosidade e atenção podem produzir jornais interessantes e importantes todos os dias. Para quem se interessa, o mundo pode ser fascinante mesmo sem os eventos que rendem as grandes manchetes da maior parte da imprensa.
Nem toda grande história é inspirada por eventos épicos. Se fosse, quem teria escrito a Comédia Humana?
* Publicado no Observatório da Imprensa