A “invasão” nas assessorias

O XIS DA QUESTÃO ? Os números da SECOM indicam que o governo se tornou ? já faz tempo ? o maior empregador de jornalistas, no Brasil. O modelo se multiplica por governos estaduais e municipais. Depois, também pela iniciativa privada, em vertiginoso crescimento. Bom? Ruim? Ético? Imoral? Antes de polemizar, convém conhecer as razões históricas do fenômeno.  

  

1. Jornalistas no governo ? aos milhares   

  

Os jornais de quinta-feira passada (11-9-2003) noticiaram a inauguração da redação e do site da Secretaria de Imprensa e Divulgação (SID) do Palácio do Planalto. Na cerimônia, em discurso informal e bem humorado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva queixou-se dos incômodos provocados pelo dever de conversar com os jornalistas. Mas admitiu: ?Por mais que a gente reclame, por mais que a gente fale mal, nós não seríamos o que somos sem a imprensa brasileira?.   

  

Embora o presidente se queixe do assédio dos jornalistas, o site da CID serve a estratégias e táticas de um fluxo inverso, em busca dos jornalistas. Ou melhor: em busca do espaço da notícia, para ocupar, ampliar e consolidar lugar próprio nos processos jornalísticos.   

  

Face à complexidade da tarefa, a equipe da SID pode ser considerada pequena. São apenas sete profissionais, um deles Ricardo Kotscho, que comanda o grupo, na qualidade de secretário de Imprensa e Divulgação da Presidência da República. Dos sete, Kotscho e mais quatro são jornalistas: Inês Lima, editora do site; Maria Luíza Baldoni, editora de Imprensa Nacional; Denise Gorczeski, assessora especial de D. Marisa Letícia, a primeira-dama; e o fotógrafo Ricardo Stucker, de longa carreira na imprensa. A editora de Imprensa Internacional, Ana Maria Carneiro de Matos, formada em Letras, tem currículo de radialista, e por isso está lá.   

  

O único integrante da equipe sem vínculos de formação com jornalismo é o secretário-adjunto, Fábio Kerche, doutor em ciência política, pela USP.   

  

É preponderante, portanto, a presença de jornalistas no grupo profissional que faz a assessoria de imprensa do presidente Lula.   

  

O perfil profissional da SID sintetiza, de alguma forma, o que se vê nas   

áreas de comunicação do governo, em plano nacional. Sabem quantos profissionais de comunicação trabalham nas equipes dos diversos órgãos federais, de administração direta e indireta, em Brasília e espalhados pelo País?   

  

Exatamente 2.215.   

  

Foi o que me informaram na SECOM (Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica), quando fiz a consulta. E me disseram mais: em maioria esmagadora, são jornalistas. Profissionais de Relações  

  

Públicas e de outros segmentos? Só em raros casos pontuais.  

  

Os números confirmam a ocupação do espaço de assessoria de imprensa/comunicação por jornalistas – na esfera governamental, de forma ainda mais acentuada do que na economia privada.   

  

Os números da SECOM indicam, também, que o governo se tornou ? já faz tempo ? o maior empregador de jornalistas, no Brasil. E o modelo se multiplica por governos estaduais e municipais.   

  

Bom? Ruim? Ético? Imoral?  

  

Para fazer a discussão, e evitar retóricas levianas, torna-se indispensável mergulhar na história. A história, por ser comprida, terá de continuar no texto da próxima semana. Mas há que dar início ao mergulho.  

  

2. No início, um projeto de RP…  

  

Antes da ventania militar de 1964, mais especificamente antes de Médici, as estruturas de comunicação nos governos eram praticamente inexistentes. Na Presidência da República, as tarefas limitavam-se às de um assessor de imprensa, habitualmente amigo do presidente, como no caso de Autran Dourado, no governo JK. Aliás, vale a pena ler o livro ?Gaiola Aberta?, no qual Autran revela os bastidores dessa sua experiência, carregado de tramóias.  

  

Pois o governo militar, na presidência de Costa e Silva, resolveu criar a Assessoria Especial de Relações Públicas da Presidência da República, a famosa AERP, que rapidamente ganhou status de superministério.  

  

A consolidação teórica e estratégica do modelo deu-se com a realização do I Seminário de Relações Públicas do Executivo, realizado no Rio de Janeiro, de 30 de setembro a 5 de outubro de 1968. Lá estavam, além do pessoal da AERP: representantes (vários deles militares ocupando funções de relações públicas) de 16 ministérios, da Agência Nacional, das estações de rádio oficiais, do Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) e da Associação Brasileira de Relações Públicas. Com o aval político da ABI, cujo presidente, jornalista Danton Jobim, fez a conferência de encerramento.  

  

Cinco grandes temas foram debatidos, cada um em sua respectiva comissão:   

  

1) Organização e funcionamento dos serviços de Relações Públicas nos   

órgãos da administração federal; 2) Normas de trabalho entre os diferentes serviços de Relações Públicas da administração federal e os veículos de comunicação social; 3) Diretrizes de Relações Públicas no Governo; 4) Promoção institucional do Governo; 5) Imagem do Governo na opinião pública.  

  

Guardo, como preciosidade, o documento final do Seminário, com as conclusões das cinco comissões. No seu conjunto, temos ali um programa de Relações Públicas, com diretrizes e metas, num projeto claramente orientado por especialistas do ramo. Não há espaço para transcrições. Mas seria lesar os leitores não citar pelo menos duas conclusões que, a meu ver, sintetizam o espírito e os objetivos centrais do plano:  

  

– ?Adoção de uma política global de comunicação social que permita de fato a integração do povo com o governo. Tal política, para ser realmente efetiva, deve tornar-se uma constante para toda e cada uma das realizações do governo?.   

  

– ?Aproveitamento integral da figura do presidente, no seu aspecto humano, moderado e compreensivo, para caracterizar toda a campanha orientada no sentido de valorização do homem, a única susceptível de criar uma imagem efetiva e imediata do governo?.   

  

Explica-se, assim, em boa parte, a estranha popularidade alcançada pelo general Médici. Enquanto nas masmorras a tortura comia solta, a figura popular de Médici era disputada por políticos e a sua fotografia se espalhava Brasil além, enfeitando residências pobres.  

  

3. … depois, a contratação de jornalistas  

  

Após o Seminário, cresceu o poder da AERP. Além de dispor de verbas e vagas à vontade, a AERP coordenava a rede governamental de divulgação, em crescimento vertiginoso, e administrava a negociação política e financeira com as estruturas de comando dos meios de comunicação.  

  

Para alcançar sucesso, quem os comandos de Relações Públicas contrataram? Jornalistas. Deu-se, então, o fenômeno da multiplicação de jornalistas no governo, uns contratados para cumprir horário de trabalho regular nas assessorias, outros, para nada fazer além da obrigação de interfaces aliadas, nas redações.   

  

Com tal força de barganha, o sucesso media-se em centimetragem de notícias impressas e, principalmente, no imensurável ?não publicado?. Naturalmente, o sucesso da AERP fez escola, disseminando o modelo por governos estaduais e municipais.   

  

Os governos tornaram-se grandes empregadores de jornalistas. Nos anos 70, o modelo de assessorias de imprensa recheadas de jornalistas disseminou-se, também, pelo universo empresarial, que se expandia e modernizava, com a euforia, o ufanismo, os dólares e os incentivos do ?milagre econômico?.  

  

Mas é apenas o começo da história. Para evitar fadigas, recomenda-se um intervalo nessa evocação. Retomaremos o assunto na próxima semana.  

  

Notas de Rodapé  

  

1) Para evitar equívocos de avaliação, esclareço que, até pela minha história pessoal, jamais defendi a reserva de mercado para jornalistas diplomados. Penso, porém, que a obrigatoriedade do diploma serviu para moralizar uma profissão até então corrompida pelos favores oficiais (exclusão do dever de pagar imposto de renda, por exemplo), o que explica o fato de, naqueles tempos, tanta gente querer e conseguir registro de jornalista, sem o ser.  

  

2) A frase ?nas duas últimas décadas, perderam força, competência e espaço, no mercado e nos modelos gerenciais?, que gerou certa celeuma, tinha sentido genérico em relação à carreira e à evolução da profissão de relações públicas que, a meu ver, também por deficiências curriculares, não acompanhou o rápido e complicado desenvolvimento dos modelos administrativos e gerenciais, dentro dos quais a comunicação passou a ter papel complexo, devido à fisionomia discursiva dos conflitos. Mas isso nada tem a ver com o ?ser melhor ou pior?, em comparações, inevitavelmente tolas, entre jornalismo e relações públicas.  

  


FONTE: Comuniquese

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