O papel de toda oposição política é se opor, como diria o Conselheiro Acácio, e a isto poderia ser creditado o vitupério do PSDB contra o governo petista, tachado de "incoerente, confuso, fisiologista e incompetente".
O manifesto dos juízes e procuradores (19/7/03) joga mais óleo na fogueira ao "denunciar à nação brasileira a situação desagregadora e caótica causada pelo relatório da reforma previdenciária, com a efetiva fragilização da soberania nacional e o desmonte total do Estado". No horizonte dos denunciantes, "os contornos de uma séria crise institucional".
O fato é que vem crescendo, aos olhos da imprensa diária, uma imagem contraditória, senão muito confusa, do governo federal, corroborada por colunistas e analistas de diversas procedências.
O primeiro ponto a se destacar é, sem dúvida, a confusão das propostas para a reforma da Previdência, pontuada pelas idas e vindas das negociações com o Congresso e com os governadores. Ainda há pouco, O Globo (16/7/03) não perdia a oportunidade de recordar a irritação do ministro José Dirceu em maio: "E se mudei de posição? E daí? Não vejo contradição. Não tenho nenhum problema de mudar de posição neste caso".
No vaivém das posições, o inegociável ? antes, publicamente justificado por supostas razões de justiça social ? torna-se mero sopro de voz. Agora se diz que, com as emendas, a reforma da Previdência proporcionará uma economia de 50,7 bilhões de reais em 20 anos contra os 52,4 bilhões de reais, se fosse mantida a versão original.
Na realidade, se diz mas não se sabe, uma vez que não têm maior confiabilidade quaisquer projeções matemáticas ou simulações computacionais para acima de cinco anos, em especial num cenário econômica e politicamente instável. Era, porém, com certeza draconiana que, desde o início, ministros esgrimiam com números contra a perspectiva dos direitos adquiridos.
Improvisa-se o tempo todo, entra-se de cara num cipoal de contradições, em meio ao parlapatório do presidente da República, cuja imagem pública só tem feito acentuar o processo.
De fato, na disparidade entre a imagem do governo e a do presidente Lula, faz-se presente o espírito hesitante das massas. Assim é que a última pesquisa CNT/ Sensus (julho de 2003) aponta para uma nova queda de popularidade do governo, enquanto permanece intocada a imagem presidencial. Boa não é a imagem do coletivo dirigente, mas a da pessoa do presidente, aquela que levou às lagrimas em Londres o famoso sociólogo Anthony Giddens, por sinal o mesmo que praticamente chorava de felicidade com a imagem intelectualizada de FHC.
Reforma informacional
Em princípio, pode-se entender essa divisão entre governante e pessoa como um resultado da tendência popular, muitas vezes referendada por cultos analistas, de psicologização do social. Põe-se o indivíduo no lugar do ator social, deixando de lado o papel que ele tem de "interpretar" enquanto sujeito político, ainda que tal interpretação devesse ser necessariamente um corolário de sua biografia. Em outras palavras, adere-se afetivamente à dimensão humana do político, esquecendo-se da racionalidade político-social, que mais interessa à cidadania.
No caso do presidente Lula, espera-se que a biografia do torneiro mecânico Luiz Inácio da Silva possa ser um "material sociológico perfeito" e não um instrumento de apoio marginal à tarefa analítica, como costuma acontecer com os dirigentes de linhagem tradicionalmente burguesa.
Espera-se, portanto, que haja continuidade, e não divisão, entre uma vida pregressa supostamente orientada para a conquista de justiça social e o controle do poder de Estado.
Mas a divisão parece ganhar o primeiro plano. E a sua principal conseqüência político-social é, até agora, a confirmação da suspeita de que a propalada reforma da Previdência não seja fruto de uma vontade ético-política, nascida de uma interpretação lúcida do auto-entendimento social, e sim da vontade atabalhoada de um ajuste fiscal.
E, ainda por cima, teledirigida: pontos isolados da pauta de sugestões do Banco Mundial ("Políticas para um Brasil justo, sustentável e competitivo"), manifestamente apresentada para fins de discussão, acabaram sendo tomados ao pé da letra, como o texto de uma cartilha.
Daí, a contradição entre o país real com alguma consciência acumulada quanto a direitos sociais e os sacerdotes do mercado enquanto novo deus regulador das relações humanas; daí a falta de entendimento entre ministros e setores diferenciados do próprio governo que leva ao abandono apressado de posições ferreamente defendidas semanas antes.
Um exemplo: a paridade entre inativos e ativos, apresentada semanas atrás como ponto inaceitável, porque desfiguraria todo o projeto da reforma, de repente passa ser considerada uma vantagem fiscal para o governo.
Diante de tudo isso, a imprensa cotidiana parece reforçar a incongruência generalizada. Enquanto o noticiário não consegue ocultar a barafunda e a troca açodada de posições (e não é que o apressado come mesmo cru?), editoriais e determinados colunistas fingem não enxergar os buracos do projeto da reforma da Previdência, para poderem continuar insistindo na mais absoluta necessidade de que ela seja perpetrada tal e qual, ao arrepio dos direitos.
Para colunista de jornal ou de televisão com salário superior a dez mil dólares mensais, todo direito social é um "privilégio" e todo progresso da sociedade é apenas um avanço do mercado. Em meio à crise econômica que a assola, talvez seja chegada a hora de a imprensa começar a pensar seriamente sobre a sua própria reforma informacional.
(*) Jornalista, escritor, professor-titular da UFRJ
FONTE: Observatório da Imprensa